Conheça a médica e investigadora que quer mudar o tratamento do cancro da mama avançado
A incidência do cancro da mama, uma doença que mata todos os dias três mulheres em Portugal, continua a crescer em todas as faixas etárias, apesar de ser mais frequente nas mulheres depois da menopausa.
Quem o diz é Fátima Cardoso que dirige o Programa de Investigação do Cancro da Mama e a Unidade da Mama do Centro de Cancro Champalimaud, em Lisboa.
O cancro da mama avançado tem sido uma das suas preocupações e foi o mote para esta conversa, onde nos revelou, entre outras coisas, as recomendações da primeira Advanced Breast Cancer Consensus Conference (ABC1), que pretende equiparar a qualidade do tratamento do cancro da mama avançado ao do precoce para que a sobrevida dos doentes aumente.
Na conferência ABC1, que reuniu em Lisboa especialistas mundiais, foram feitas recomendações para o tratamento do cancro da mama avançado. Por que razão houve necessidade de as emitir?
Contrariamente ao que acontece com o cancro da mama precoce, para o qual existem recomendações internacionais desde os anos 70, no cancro da mama avançado ainda prevalece a ideia de que, como este último é incurável e existem menos tratamentos standard, os médicos podem tratar a doença como acham melhor. Contudo, já foi demonstrado por estudos, que o uso de recomendações internacionais aumenta a sobrevida dos doentes.
Quais são as recomendações principais?
Aplicar no cancro da mama avançado os princípios da oncologia moderna usados no precoce. Por exemplo, a abordagem tem de ser multidisciplinar porque existem terapias muito específicas para as diferentes metástases e o doente só tem a beneficiar se for acompanhado por vários especialistas.
Porque defendem a criação de unidades de cancro da mama?
O melhor tratamento é dado nas unidades especializadas e, apesar da União Europeia recomendar a sua criação até 2016, queremos transformar essa recomendação em lei para que os doentes sejam tratados pelos especialistas mais adequados. Os estudos mostram que há uma diferença enorme na sobrevida caso um doente com cancro da mama precoce seja operado por um cirurgião que faz menos de cinco destas operações por ano ou mais de 50. A experiência é muito importante.
Também querem fomentar os cuidados de suporte e paliativos.
São fundamentais para que os doentes tenham uma melhor qualidade de vida, suportem melhor os outros tratamentos e controlem a dor. E, hoje, mesmo nos países ditos desenvolvidos como Portugal, alguns doentes não têm acesso fácil ao controlo da dor, nomeadamente, à morfina.
E para os tratamentos o que recomendam?
Cada subtipo de cancro da mama deve ter um tratamento específico como se faz no cancro da mama precoce. Além disso, há muito poucas situações em que é necessário associar medicamentos de quimioterapia. Estudos mostram que o seu uso sequencial tem a mesma eficácia e é mais bem tolerado. Quanto mais tempo conseguirmos controlar a doença sem passar para outro tratamento, mais tempo ganhamos em cada passo terapêutico e guardamos as armas para as usar de forma sequencial.
Poderá ser o caminho para o tornar uma doença crónica?
No cancro da mama avançado, o nosso objetivo não é a cura porque esta não existe, mas é transformá-lo, se possível, numa doença crónica que evolua lentamente, seguindo o tratamento que tenha os menores efeitos secundários para que o doente possa viver mais e com melhor qualidade de vida. Em média, a sobrevida dos doentes é de dois a três anos, mas temos doentes que vivem oito ou nove anos e o nosso objetivo é continuar a investigar para que a maioria viva mais de dez anos.
O cancro da mama avançado é predominante em alguma faixa etária?
Pode ser diagnosticado em qualquer idade. Apenas em dez por cento dos casos o diagnóstico é feito já num estado avançado. A maioria surge numa recidiva, que pode ocorrer em cerca de 30 por cento dos doentes com cancro da mama precoce.
Porque é que isso acontece?
Porque, apesar dos tratamentos realizados, algumas células cancerígenas permanecem no organismo. Como são muito poucas e pequenas não são detetadas por nenhum teste.
E quando acordam originam as metástases ou recidivas. Isso pode acontecer rapidamente, nos tumores mais agressivos, mas também 15 ou 20 anos depois do diagnóstico inicial.
Então falar de cura mesmo no cancro da mama precoce é errado?
Temos de ter cuidado com a palavra cura e transmitir a noção de que a doença implica uma vigilância para o resto da vida. Não se deve pensar nisso todos os dias, mas não se deve descurar o seguimento.
A Food and Drug Administration (FDA) proibiu o uso do bevacizumab nos tratamentos do cancro da mama em estado avançado. O que pensa disso?
É algo difícil de compreender, até para nós médicos, que existam duas entidades reguladoras, a FDA e a EMEA (Agência Europeia de Medicamentos), e baseadas nos mesmos dados, a primeira retirou a licença para o cancro da mama e a segunda ainda não. O primeiro estudo feito com este medicamento para o cancro da mama avançado mostrou um benefício importante, mas os seguintes demonstraram que o benefício é muito menor.
Mas os pacientes têm razão para recear o medicamento?
Segundo a recomendação que saiu da ABC1, este medicamento deve ser administrado a um pequeno grupo de doentes que esteja sintomático e tenha uma doença agressiva, para quem os benefícios são superiores aos efeitos secundários. É importante identificar marcadores preditivos para saber quem beneficia deste medicamento que pode ter efeitos secundários importantes e é muito caro.
O que tem de mudar em Portugal para que essas recomendações sejam seguidas?
Ao centramo-nos em princípios e não em tipo de medicamentos, tentamos fazer com que as nossas recomendações possam ser aplicadas em qualquer parte do mundo. É claro que nos países mais ricos os doentes terão acesso a uma maior variedade de tratamentos. Infelizmente essas diferenças existem também dentro de cada país, pois no setor privado há acesso a mais tratamentos do que no público.
E como é que isso se pode alterar?
Tem de se estudar o custo/benefício, não se deve olhar só para o preço do medicamento. Se um fármaco provoca menos efeitos secundários, faz com que o doente vá menos vezes ao hospital e é administrado mais facilmente, o seu preço é compensado pela redução dos outros custos. Fiquei um pouco desiludida com o facto de, nos hospitais públicos nacionais, ainda se usarem medicamentos que já não uso há dez anos.
O Centro Champalimaud vai mudar forma como se faz a investigação na área do cancro em Portugal?
Como em qualquer local, não se pode fazer investigação isolada, pelo menos a clínica e a translacional, a que faz a ponte entre o laboratório e a clínica. As equipas têm de ser multi-institucionais e multinacionais, por isso, queremos pertencer a redes de investigação nacionais e internacionais.
Já há uma articulação com os hospitais?
Recentemente, no Congresso Nacional de Oncologia, eu e colegas de outros hospitais falámos na necessidade de criar um grupo português do cancro da mama, para trabalharmos em conjunto, tal como já se faz para o cancro da cabeça e do pescoço.
O que falta para isso acontecer?
Organização e saber trabalhar em conjunto.
Quando conseguirmos fazer isso, estaremos na mesma posição que os outros países europeus e poderemos participar mais ativamente nos estudos.
Já estão a assistir doentes na Unidade da Mama do Centro Champalimaud?
A Unidade da Mama abriu no verão, mas ainda não temos todos os serviços necessários abertos.
Temos imagiologia, medicina nuclear cirurgia, radioterapia, serviço de enfermagem, oncologia médica e anatomia patológica. Os casos são discutidos e as decisões tomadas no seio de uma equipa multidisciplinar. Em breve, teremos oncopsicologia, isto é, apoio psicológico especializado para doentes oncológicos.
Quando assumiu a sua função no Centro disse que ia apostar na investigação dos marcadores de prognóstico e preditivos. Continua a ser a sua aposta?
Essa tem sido a minha área de investigação na última década, mas aqui ainda só estamos a fazer investigação clínica. Em relação aos marcadores, estou à espera dos resultados do grande estudo para o cancro da mama precoce (MINDACT) que ajudei a coordenar a nível europeu e que reuniu 6.600 doentes.
Qual é a importância desses marcadores?
Ajudam-nos a distinguir os doentes com cancro da mama precoce que não necessitam de tratamento dos que precisam e, dentro destas, qual o melhor para cada um. Os métodos que temos, hoje, ainda são limitados, mas os novos testes genómicos, que avaliam os genes do tumor, são fundamentais. Embora sejam caros, terão uma relação custo/benefício elevado porque permitem diminuir o recurso à quimioterapia em dez a 15 por cento, que é mais cara do que o teste. E mais importante, evita-se que os doentes, que não necessitem de quimioterapia, passem por todos os efeitos secundários que esta provoca.
O Infarmed revelou recentemente que a aplicação de ácido hialurónico nos seios pode dificultar a interpretação de mamografias. Qual é a sua opinião?
As próteses podem dificultar a visibilidade das mamografias, mas também não podemos proibir as mulheres de as colocarem. Estas devem é de ter a consciência de que têm de fazer uma vigilância ainda mais cuidada.
Estilos de vida saudáveis
Os conselhos de Fátima Cardoso para uma vida mais sã:
Alimentação
Neste âmbito, a única coisa que sabemos é que uma dieta rica em gorduras aumenta o risco de cancro da mama e do cólon, além do risco cardiovascular. A mensagem principal é que não há nada que seja proibido nem há nada que se tenha de comer às toneladas.
Álcool
O consumo de álcool está associado a um aumento de risco do cancro da mama, e quanto maior o consumo maior é o risco. No entanto, a nível cardiovascular um consumo moderado até faz bem.
Tabaco
Não está diretamente relacionado com o cancro da mama como está com o pulmão, língua, laringe, esófago, bexiga, pâncreas entre muitos outros. No entanto, sabe-se que aumenta o risco de recidiva nas pessoas que já tiveram cancro da mama.
O percurso de Fátima Cardoso
Após ter exercido durante dez anos o cargo de Professora Assistente no Serviço de Oncologia Médica do Instituto Jules Bordet, em Bruxelas, onde para além do trabalho clínico era responsável pela investigação clínica no cancro da mama e membro da Unidade de Investigação Translacional, em 2010, assumiu a direção do Programa de Investigação do Cancro da Mama e da Unidade da Mama do Centro de Cancro Champalimaud.
O seu caminho iniciou-se na Universidade do Porto.
Foi lá que se licenciou em Medicina, tendo-se especializado em Oncologia Médica. Dedica-se ao estudo da biologia do cancro da mama, dos marcadores de prognóstico preditivos e das respostas da terapia sistémica. É coordenadora do Programa de Cancro da Mama da Escola Europeia de Oncologia.
Veja a galeria de imagens Auto-exame mamário (
http://mulher.sapo.pt/fotos-videos/galerias-de-fotos-2/?id=1197250&), onde encontrará os cuidados de palpação essenciais para a prevenção do cancro da mama, uma das principais áreas de investigação desta profissional.
Texto: Rita Caetano / Revista SABER VIVER